quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Matéria prima dos estudantes para fomentar improviso

Tive que levantar e "recombinar" meu repertório de histórias e fui resgatando bênçãos saudosistas dos estudantes ou ouvintes em escolas, livrarias, bibliotecas, festas, centros culturais, ONGs, saraus... No ensaio, a história me ensina. Nas apresentações, o público dilata meu jogo de cintura. A despeito de todo planejamento, justificativa, argumento que embaso nos bastidores, é por eles que recrio cada movimento e fala...
Apresentando Nós, da Eva Furnari, uma ode a buscarmos nossa Pasárgada, já aconteceu quando a personagem Mel tenta falar com a vaca e os pequenos duvidam:
- Mas esse bicho não fala!
- Só nos livros né? - brinco e ainda faço a garotada ajudar na sonoplastia "muuuu". Não, nestas páginas ela não fala mesmo.
Na lenda indigena de surgimento da noite, em que uso um colar grosso preto para reinventá-lo como cobra grande, Boiúna, na penúltima apresentação numa brinquedoteca, um menininho esticou os braços duas vezes em busca do elemento cênico. Nem é um que costume passar pro espectador esse acessório, mas ele estava querendo participar tanto que compartilhei. E a lenda ganha novo corpo...
Contando Receita para Pegar Saci, da Ana Claudia Ramos, quando o bambu aparecia como casa do saci e eu indicava que era como o que ficava na frente da biblioteca da escola, um pedação da sala virava para trás procurando, mas acho que as janelas da Padre Moreau não ficavam de frente para o jardim do Colégio Santa Maria.
Recontando o Homem que Enxergava a Morte, estudado numa releitura de Ricardo Azevedo, emprestei um pano preto de uma colega para fazer a morte e um chapeu do meu pai para interpretar o médico capiau. Numa das trocas de elemento de cena, o pano da morte derrubou uns livros da estante (a gente sempre imagina a morte assim, uma ventania de perder o prumo). Não perdi tempo:
- A morte é perigosa mesmo heim?
A chefe brincava que nem ensaiando aquilo sairia tão encaixado no causo...
Em Horrorosas Maravilhosas, recontada por Elias José, mas que também tem versões dos irmãos Grimm e Teófilo Otoni, na hora em que as bordadeiras pediam ao noivo pra não deixar a futura mulher continuar bordando, pois ficaria feia como elas, a criançada cortava o silêncio rindo, pois o apaixonado caía direitinho na artimanha das talentosas costureiras. A atividade final era costura (eu mesma me redescobri ali, entre linhas, agulhas e retalhos). Uma vez acabou a aula e várias crianças fizeram questão de continuar costurando. A chefe sempre dizia para cobrarmos que no recreio elas comessem, brincassem, conversassem mas a delícia daquele intervalo para uns dez foi começar uma futura colcha. Às vezes também sinto um pouco isso: é tanta demanda racional, que quando um trabalho manual cai nas mãos... Que tarefa benta! No fim tive que acabar o que eles começaram (não
estava exatamente no meu planejamento inicial), mas fiquei horas unindo sessenta retalhos, de duas turmas... Às vezes faço um pouco como meu pai: embalo numa leitura ou atividade... E pra sair delas?
Não só na escola aprendemos com os pequenos. No hospital Cruz Azul, onde trabalho pela ONG Viva e Deixe Viver, sempre recaio na contação de Frida, de Jonah Winter, uma ode ao quanto a pintora ao invés de reclamar de suas dores, pintava. E ali acho que estimula, pois os internados ganham
canetinhas e desenhos. Uma vez contei para a irmã de um internado e ela quis saber se era uma personagem real, confirmei e ouvi:
- Ah, então vou pesquisar!
Tem o que contenta mais professora do que estimular alguém a levantar mais informação?
Usei A Gaiola da Adriana Falcão super curiosa, pois a conhecia mais em cinema ou TV. É uma espécie de "recontagem" do Pássaro Maravilhoso, de Rubem Alves. Para quem não conhece, a menina e o pássaro se amam, mas sofrem com ele preso, também com ele solto por perto, até que ele volta ao céu e ela se tranquiliza mais em terra afastada desse amor. Ao término, jogava batata quente com eles, prendia os que perdiam numa espécie de gaiola com carteiras e cadeiras, para depois perguntar se sentiram presos, se tinham animais e estes podiam se sentir engaiolados... Ri por dentro quando ouvi de dois:
- Me sinto assim na escola.
- Na sala de aula é assim!
Isso com ideias iniciais de discutir liberdade dos bichos e ciúme dos amigos. Acho impressionante como eles voam looonge! O aprender é "incarceirável".
Uma vez trabalhei Biblioburro com os meninos, extraída do livro Bibliotecas do Mundo de Daniela Chindler, valorizando os livros e o acesso à literatura, já que na Colômbia dessa história um professor viajava 7, 8 horas com os livros em cima das mulazinhas, revoltadas por serem consideradas "burras", para ensinar ou contar histórias aos que não podiam comprá-las. Já tinha sido roubado, caído, machucado e mancava... Ao término mostrava uma apresentação com fotos de bibliotecas diferentes em pontos de ônibus, praias,,, E pedia que desenhassem ideias de bibliotecas diferenciadas, dando papeis verde e amarelo (era época da Copa). Desde lá, já sonhava com uma biblioteca num caminhão. Um estudante criou a "caminhoteca". A chefa achava que eles não desenhariam, pois não dávamos notas ou faltas. Mas virou um varalzinho gracinha de ideias. Uma professora achava que foi o jeito que terminei a aula.  E as meninas cabeça que criaram a Recreioteca, para quem não queria brincar ou preferia ler e ganharam uma espécie de carrinho de comprar para viabilizar a proposta? Estou quase realizando o sonho duma literatura criativamente itinerante como a caminhoteca do estudante que conectou com minha vontade encroada. Joga para o universo que ele entende e retribui. MESMO!